“O cinema brasileiro que vemos hoje é, no geral, feito por um homem, branco e heterossexual. Temos outras vozes no país e não podemos continuar sendo apenas esse mesmo tipo de cinema”, Gledson Mercês. Confira na íntegra a entrevista que também faz parte da Revista Milímetros nº 8 (foto divulgação /Ancine).
Paulo Gois Bastos
Integrante da Comissão de Gênero, Raça e Diversidade da Ancine, Gledson Mercês trabalha como Técnico em Regulação da Atividade Cinematográfica e Audiovisual desde 2012 e, atualmente, exerce o cargo de Coordenador Substituto de Gestão de Processos de Fomento na Superintendência de Fomento da Agência Nacional do Cinema – Ancine. Comunicólogo, ator e com Especialização em Artes Visuais e Direção Teatral, ele também integrou a equipe que produziu o Informe Diversidade de Gênero e Raça nos Lançamentos Brasileiros de 2016, pesquisa que explicita a pouca participação de mulheres e de negros como protagonistas da produção audiovisual nacional. Nesta entrevista, Gledson fala sobre o papel da Comissão e sobre a importância que a diversidade tem para a política audiovisual brasileira.
A proposição de ações que promovam a inclusão, a diversidade e a igualdade de oportunidades para grupos discriminados em função da cor, raça, etnia, origem, gênero, deficiências, idade, cultura, crenças, orientação sexual e outros, além da recomendação de práticas de sensibilização contra a cultura discriminatória e preconceituosa, são algumas das atribuições da Comissão de Gênero e Diversidade da Ancine. Criada a partir do protagonismo dos servidores da própria Agência, essa instância posta em funcionamento desde o final do ano passado tem orientado a adoção de medidas que ampliem o acesso aos meios de produção audiovisual para pessoas negras, mulheres, indígenas, povos tradicionais e LGBTQI+.
A investida em uma política audiovisual que promova uma maior representatividade de gênero e raça na mídia também se ancora no Informe Diversidade de Gênero e Raça, que foi publicado pela Coordenação de Monitoramento de Cinema, Vídeo Doméstico e Vídeo por Demanda da Superintendência de Análise de Mercado da Ancine. Nesse estudo, que contou com informações do Sistema de Acompanhamento da Distribuição em Salas de Exibição – Sadis, foram analisados dados de 1.326 pessoas que integraram as equipes de 142 longas-metragens brasileiros lançados comercialmente em 2016. Dessa amostragem, 97,2% das obras contaram com a direção de pessoas brancas. As mulheres respondem por 19,7% dos filmes. Sobram 2,1% para os homens negros e nenhum filme de 2016 contou com a direção ou com o roteiro de uma mulher negra.
Por que a discussão sobre as minorias políticas é importante para a política audiovisual?
Estamos falando de um país de mais de 200 milhões de pessoas onde apenas uma pequena parte da população é representada. O cinema brasileiro que vemos hoje é, no geral, feito por um homem, branco e heterossexual. Temos outras vozes no país e não podemos continuar sendo apenas esse mesmo tipo de cinema. Esse modelo não se sustenta mais por muito tempo e vai esgotar-se. O país é grande, há público para tudo e a população brasileira clama por outras vozes. Os profissionais do audiovisual, que são negros, mulheres e indígenas querem oportunidades, mas eles não têm acesso aos grandes recursos, às grandes empresas e aos grandes patrocínios, nem ao fomento público. Por isso, precisamos discutir e rever tudo isso para encontrar soluções que promovam o acesso dessa população excluída aos recursos. Estamos falando de uma indústria e de um mercado. E não se trata somente de reparação das injustiças que foram cometidas com a população negra, indígena e com as mulheres; a diversidade é, sobretudo, uma questão que passa pela economia. Negros e mulheres são consumidores; nós pagamos por esses conteúdos e queremos uma visão diferente das coisas, queremos ter oportunidade de voz. A diversidade é tanto para o público quanto para os profissionais do audiovisual. Veja o exemplo do filme Pantera Negra, uma produção com um elenco majoritariamente negro e que trazia mulheres no poder. Foi um sucesso e está entre as dez maiores bilheterias de todos os tempos. Isso é uma prova de que a diversidade gera lucro e emprego e faz com que o país cresça. Há ainda a questão da representatividade: não adianta só colocar o negro no papel de subalterno ou o profissional negro ocupando apenas as funções profissionais de menor prestígio, não adianta mais criar essa imagem deturpada. Com essa fórmula desgastada, o audiovisual brasileiro não se sustenta. É preciso uma renovação que passa pela diversidade de gênero, raça e qualquer outra diversidade, pois assim é a realidade da população que se quer ver e ocupar seu espaço.
Como a Comissão surgiu? Quem faz parte dela e como é o seu funcionamento?
Alguns servidores da Ancine tinham interesse pelo assunto. Eu, particularmente, no meu trabalho de conclusão da graduação, debrucei-me sobre o papel do negro na telenovela. Então, foram juntando-se pessoas com interesse pessoal pelo tema. A Comissão é formada por 16 servidores da Ancine e surgiu a partir dessas vontades individuais e por constatarmos a falta de diversidade no audiovisual brasileiro; a ausência ou a representação subjugada de negros, indígenas e mulheres. Em novembro do ano passado, a Comissão foi institucionalizada e, de lá pra cá, tem tido muito trabalho e está sendo muito atuante. Hoje a Comissão não faz parte do organograma da Ancine. Ela é um setor específico, tem um mandato de dois anos e objetiva promover a diversidade de gênero e raça no audiovisual brasileiro, atua tanto em questões internas sobre a diversidade da própria Agência quanto em questões externas. A Comissão não tem o poder de decisão na Ancine, mas auxilia nas decisões e temos prestado atenção a todas as decisões relacionadas ao audiovisual que perpassam por questões da diversidade.
Qual o perfil dos servidores que fazem parte da Comissão?
Somos servidores de diversas áreas: da análise de mercado, do fomento, do RH, das diretorias. Isso é um ganho, porque colabora para que sejamos uma comissão rica em conhecimento do mercado e em experiências diferentes. A Comissão é composta por homens e por mulheres, por pessoas negras e brancas; então, também é diversa nesse sentido.
Existe uma interlocução da Comissão com o mercado e com a sociedade civil?
Fizemos algumas apresentações interna e externamente. Temos participado de eventos relacionados a essas temáticas, promovendo exibições de filmes para os servidores seguidas de debate com os realizadores. Temos feito algumas apresentações abertas a todo público. A gente convida personalidades, atrizes e atores negros, indígenas e outros profissionais do audiovisual para eles participarem e nós ouvirmos deles a fim de entendermos suas demandas. Temos sempre buscado diálogo com as entidades como, por exemplo, a Associação de Profissionais do Audiovisual Negro – Apan, que está sempre presente e com alguns players. Temos tido reuniões com essas pessoas porque esse é um lugar importante para entender as suas demandas. Apesar de ser uma Comissão da Agência, ela não veio de uma demanda vertical; mas surgiu a partir dos próprios servidores e tem mantido diálogo com várias entidades e com várias representações do audiovisual e de pessoas que lutam pela diversidade no cinema brasileiro. Temos sido buscados e temos sido proativos em consultar como está o mercado. A partir desse diagnóstico, podemos atuar para que sejam desenvolvidas políticas públicas que promovam o aumento da diversidade no audiovisual.
O que mais chamou atenção nos números apresentados pelo Informe Diversidade de Gênero e Raça nos Lançamentos Brasileiros de 2016?
Os dados dessa pesquisa não foram surpresa, porque já sabíamos que havia falta de diversidade no audiovisual. Na verdade, precisávamos de um estudo que mostrasse esses números, pois, por mais que a gente saiba e veja, precisamos de números concretos obtidos a partir de uma metodologia aplicada para, a partir daí, tomarmos alguma atitude. O que mais surpreende é esses números serem tão cruéis no que diz respeito à falta de negros no mercado. Houve 142 filmes de longa-metragem lançados no cinema brasileiro, porém nenhum deles foi dirigido ou roteirizado por uma mulher negra. Os homens negros respondem apenas por 2% das direções e roteiros, ou seja , 98% dos filmes dirigidos e roteirizados em 2016 foram feitas por pessoas brancas. Não estamos falando de uma minoria, mas uma maioria que não é representada, porque as pessoas negras são 54% da população brasileira e as mulheres quase 51%, ou seja, são duas maiorias. No entanto, no audiovisual elas são minorias. Esses dados indicam que há algo muito errado na forma de fazer cinema e produzir audiovisual no país, por isso precisamos urgentemente ter atitudes para mudar esse quadro.
Que medidas a Ancine vem tomando para promover a diversidade em suas políticas?
O primeiro grande passo foi a Agência incluir a diversidade entre os princípios e valores do seu Planejamento Estratégico para o quadriênio 2017-2020. Isso deu base e respaldo para o desenvolvimento de ações, como o desenvolvimento de estudos por parte da Superintendência de Análise de Mercado. Além disso, foram estabelecidas cotas para os editais da SAv para negros, mulheres e indígenas e também em um recente edital da própria Ancine. Uma outra ação foi a paridade no Comitê de Investimento do Fundo Setorial do Audiovisual – FSA. Este ano, pela primeira vez, essa instância também teve cotas para negros e mulheres. São quatro membros servidores da Ancine e dois membros do BRDE com mandato de dois anos e com a função de analisarem os projetos que são submetidos à Ancine para obterem do FSA.
Essas ações da Ancine podem estimular a adoção políticas culturais para o audiovisual que promovam a diversidade por parte dos estados e municípios? Conhece outras experiências de ações afirmativas para o audiovisual que existam no país?
Sabemos da existência de alguns editais regionais e estaduais atentos a essas questões da diversidade, como em Pernambuco, que foram lançados antes mesmo de a Comissão ser criada. Por ser o maior órgão do cinema no Brasil, tomara que tenham a Ancine como modelo, principalmente das boas práticas. Cremos que, ao tomar esse tipo iniciativa, a Ancine sirva de exemplo para outros editais e políticas públicas nas unidades federativas para que estados e municípios desenvolvam ações semelhantes, como colocar cotas em seus editais ou criar comissões que deem atenção a essas questões, para que construamos uma sociedade mais justa e igualitária também nas telas. Somos um país onde a maioria da população é negra e mulher, mas não vemos essa presença nos filmes. Hoje não é mais possível aceitar essa falta de representatividade de cabeça baixa sem fazer nada e sem tomar uma atitude. Já não é possível ficarmos calados diante das injustiças que sempre foram cometidas.