A produtora Carla Osório atua diretamente em um setor que é um dos principais gargalos do cinema independente: a distribuição. Nessa entrevista, ela fala sobre esse aspecto da produção do audiovisual que tende a receber pouca atenção dos realizadores / Foto: Maiz D’Assumpção
Carolina Ruas
A 13ª Mostra Produção Independente – Novos Rumos traz para o centro do debate o cinema feito por mulheres, negros, pessoas LGBTQ+ e outras minorias políticas, dando um passo rumo à diversidade ao mostrar a potência desses olhares no cinema. Em outra ponta do cadeia produtiva do audiovisual, uma mulher negra dá o próximo passo, buscando ocupar espaço para o cinema independente no mercado: Carla Osório, fundadora da Livres Filmes, empresa que há quatro anos atua posicionando produções independentes e não comerciais de todo o Brasil, e é uma pioneira no Espírito Santo ao investir no segmento de distribuição.
Produtora, jornalista, fotógrafa e militante do audiovisual capixaba, Carla Osório foi presidente da ABD Capixaba de 2008 a 2010, período em que realizou a Mostra Produção Independente – Cinema em Negro & Negro, já antecipando a pauta da diversidade que retomada este ano, ao colocar a questão racial e a falta de visibilidade dos realizadores negros na história do cinema no centro do debate. Nesta entrevista, Carla fala sobre políticas para o audiovisual, acesso, racismo, militância e como, enquanto mulher empreendedora, atravessou diversas barreiras sociais e deixou sua marca na história de luta da ABD Capixaba por um cinema diverso.
Uma realização da ABD Capixaba, a 13ª Mostra Produção Independente – Novos Rumos tem o patrocínio do Banco do Estado do Espírito Santo (Banestes) e conta com o apoio da Universidade Federal do Espírito Santo, por meio de sua Secretaria de Cultura, do Iatec, da Link Digital, da Livres Filmes, da Comunicação Impressa e da TV Gazeta.
De que forma essa passagem pela presidência da ABD, de 2008 a 2010, contribuiu com a sua percepção sobre o audiovisual e como isso repercutiu na sua carreira profissional?
A ABD Capixaba sempre reconheceu mulheres na liderança, nós temos uma série de presidentas na nossa história, além de mim, teve a Sáskia Sá, agora temos a Leandra, então sempre foi um espaço muito aberto para nós mulheres. E para mim foi um momento de empoderamento muito grande (e para todos nós), porque começamos a acreditar que poderíamos fazer audiovisual no Espírito Santo e também no Brasil, nos organizamos e fomos construindo muita coisa, levando as nossas bandeiras à frente: o curta-metragem, as leis de regulação do cinema, as políticas públicas. Foi tudo muito importante pra gente saber que era possível. E construímos juntos todas essas coisas. Foi um momento de muita coletividade, não só no Espírito Santo, mas no Brasil, a gente discutia a mesma coisa que os estados do nordeste, do norte etc. Porque a ABD trazia questões fundamentais para a articulação do cinema brasileiro, como a regionalização das políticas, investimentos, leis… São ações de estado e a sociedade civil organizada foi fundamental para conquistar essas pautas.
Quais os reflexos que esse período trouxe para o cinema brasileiro? E quais os principais gargalos que a gente tem que encarar hoje?
O reflexo do que debatemos naquela época é o que estamos vendo hoje: um cinema brasileiro forte, que quintuplicou em termos de produção e se regionalizou e tem um excelente desempenho em festivais no Brasil e no mundo. Temos uma produção de alta performance. O problema maior que temos hoje é o acesso do público brasileiro, que não acompanhou o tamanho da nossa produção. Esse voltou a ser o nosso gargalo, porque o movimento cineclubista e as mostras e festivais do Brasil tiveram um enfraquecimento. Todos os setores que não se pautavam pela comercialização foram eliminados da política cultural do Ministério da Cultura pós-Gil e Juca, e os cineclubes e festivais foram alguns deles. Por outro lado, ganhamos o cabo e ele acabou absorvendo a produção brasileira independente, mas com os anos também ficou mais caro, então o acesso tá bem reduzido. E o valor das salas de cinema ainda é muito alto pra maioria da população que não pode acessar.
Como fundadora da Livres, você passou a atuar diretamente com esse gargalo relacionado ao acesso. Como é trabalhar com distribuição?
Quando penso que uma mulher, vinda de fora do eixo Rio-São Paulo, pode montar uma empresa em um dos setores mais competitivos do mercado de cinema, olho pra trás e nem sei como consegui chegar aqui. É claro que a gente sempre contou com muita parceria – dos produtores, que me confiam suas obras, e dos exibidores, que aos poucos a gente vai conquistando. Mas fui descobrindo que a distribuição é um meio do caminho – tem o produtor, que é meu cliente, e o exibidor que é meu alvo. Começamos em 2013, devagarinho, e ficamos quase um ano e meio sem operar, só estudando o mercado, falando sobre o nosso trabalho para as pessoas e, quando começamos, já tínhamos que chegar num desenho de público pra trabalharmos. Na Livres desenhamos todo o projeto junto com o produtor. Minha função principal é desenhar o melhor cenário pro filme entrar no mercado. É um trabalho de estratégia, digamos que está entre a arte e a arquitetura. Porque se não acertarmos o público certo do filme, não adianta. Tem distribuidora que se especializa num público só, mas a Livres por enquanto fecha na ideia do cinema brasileiro. Estamos começando com o cinema africano em língua portuguesa. E agora vamos lançar Os Incontestáveis, que vai ser uma experiência nova também de levar o Espírito Santo pra fora, para ser visto no resto do Brasil. Esse é um mercado tão complexo, que necessita de uma expertise de gestão, porque muda todos os dias. Não é só cinema, é o modelo de negócio.
Quais são os gargalos na distribuição? Como que os realizadores do Espírito Santo têm lidado com essa área? Ainda temos poucos filmes circulando por aí…
Temos ótimas produções no Espírito Santo, mas uma coisa que aprendi é que não dá pra ficar tentando produzir e distribuir os filmes. É preciso buscar profissionais dedicados para isso, porque é um mercado muito complexo. E precisa ter uma grana para distribuição, precisa de investimento, de gente que saiba fazer os filmes chegarem nas salas de cinema, porque é uma batalha e a gente não pode abrir mão dela. Toda vez que abrimos mão da sala de cinema, vem o cinema americano e ocupa esse lugar. Então pra mim, é uma questão de soberania nacional; não podemos abrir mão da sala de cinema. E vejo que aqui (no Espírito Santo) a gente vive só durante a produção e acaba abrindo mão do mercado, da bilheteria, que é o que deveria fazer grana pro filme. Acho que o investimento público é fundamental. Mas temos que buscar sempre dar o próximo passo, que é em direção ao mercado. Todos juntos, Estado, realizadores, público. Todos nós temos que marcar a presença do produto cultural brasileiro no mercado. Pernambuco conseguiu. E outros estados também…. Minas Gerais todo ano coloca algum filme em Cannes. Talento a gente já tem.
A 13ª Mostra Produção Independente – Novos Rumos reflete sobre a participação de mulheres, negros, indígenas e pessoas LGBTQ+ na produção de cinema, e dá visibilidade para os filmes que representem essa diversidade no cinema. Em 2009, durante o seu mandato na ABD, a Mostra já antecipava essa questão da diversidade com o tema “Cinema em Negro e Negro”. De lá pra cá, o que mudou no debate sobre a diversidade no cinema?
Batalhamos muito pra fazer essa mostra, porque, naquela época, as pessoas perguntavam “mas existe isso de cinema negro?”. Acho que tivemos uma renovação de quadros de militantes no cinema brasileiro que pensam cada vez mais nessas questões e isso é muito positivo. Nós, as mulheres, os negros, somos lideranças que batemos há muito tempo nesse martelo, e isso é ótimo, porque a mudanças vem aos poucos. O que mudou muito desde aquela época é o crescimento da participação das mulheres negras no cinema, algo que há dez anos atrás era algo muito raro ter uma mulher negra tomando os espaços. São essas meninas que estão aí, se empoderando, pegando câmera, ocupando os espaços e colocando questões propositivas não só no set, mas também na militância, que é algo fundamental. Porque, enquanto o Brasil não entender a questão da violência, que é o racismo na nossa sociedade, e pensar nessa formação de classe média que absorva esse debate, a gente não consegue avançar (para o campo do cinema). E no Espírito Santo não é diferente. Ainda existe essa visão senso comum do estado como uma colônia de alemães e italianos, não há uma contraposição desse discurso, no sentido de pensar também a enorme contribuição dos negros na formação desse estado. Mas é claro que são desconstruções que levam muito tempo pra fazer e tem que ser feito em todos os espaços, pelo debate acadêmico, pela ocupação dos espaços, pela militância, na formulação das políticas públicas e, também pelo audiovisual. Porque enquanto a gente não se vê representado na tela ou se vê restrito a estereótipos, em papéis de bandido, de prostituta, sempre marginalizado, fica difícil mudar o imaginário do público, fica difícil pra essas pessoas se verem ocupando posições de liderança, porque é uma questão de identificação, de autoestima, de um imaginário que a gente tem que mudar. Precisamos de formação, precisamos dividir as nossas experiências com o mundo. Quando fizemos a Mostra de Cinema Negro, as pessoas nem sabiam que existiam filmes feitos por realizadores negros, nem cogitavam se haveria algum diferencial estético, de temática ou de um olhar diferenciado. Trouxemos três gerações do cinema negro – o Zózimo Bulbul, o Joel Zito e o Jeferson De – e a primeira pergunta foi: cinema negro existe? E é a mesma coisa quando alguém perguntava, há uns anos atrás, se existia racismo no Brasil. Temos que convencer as pessoas de que existe o racismo, de que existia um cinema feito por negros, um cinema feito por mulheres, por LGBT etc. Como avançar se as pessoas nem sabe que a gente existe?
Qual avaliação você faz sobre os rumos da política cultural para o cinema em nosso estado? Ainda vale a pena militar pelo audiovisual capixaba?
Pelo audiovisual capixaba e brasileiro, claro que vale! A memória dos avanços políticos econômicos e sociais tá no movimento social, não tá no governo. Fomos nós que conquistamos, fomos nós que sentamos nas mesas de negociação. E isso é fundamental, não pode parar. Porque o governo muda, mas quem continua fazendo o audiovisual somos nós, os produtores, os distribuidores, o público, a sociedade civil. Então, o papel da ABD foi e ainda é fundamental. Vida longa!